quinta-feira, 29 de novembro de 2007
Depois de ti
Tentei disfarçar, pôr um ar natural de quem vai à farmácia só para comprar aspirinas, não esperei muito tempo, mas os olhos não largavam a porta, o farmacêutico não demorou, admito, lá me entregou um envelope pequenino, branco, também ele fez questão de o tratar como uma caixa de comprimidos, já não aguentava e ali mesmo saquei do papel, eu achava que sim, mas isso não bastava, mas, afinal, lá estava a cruz no positivo, dia 30 de Março, eu, que detesto datas, esqueço-as, que tenho uma memória de minhoca, sou capaz de refazer todos os minutos desde o momento em tive a certeza que estavas dentro de mim, de ter subido a Calçada do Combro em direcção ao Chiado, de ter pensado que te sentia, de ter tocado na barriga inexistente para te aconchegar, de ter comprado um body, de ter pensado que só nós sabíamos, era o nosso segredo, lembro-me de ter decidido que me iria conter até chegar a casa, ao final do dia, há notícias que não se dão por telefone, ainda agora vejo o sol da Primavera e tanta coisa que me pareceu inexplicavelmente belo, sentia-me a mãe mais feliz do mundo, sou mãe... e depois, os meses foram passando, tão bem, e eu a empanturrar-me de sardinhas, que comia quase todos os dias, hoje, jogamos a ver quem consegue comer mais, e eu, à tua espera, quando te vi, chorávamos as duas e eu, imagina, apressei-me a segurar as minhas lágrimas, achei que não irias entender que eram de felicidade, tinhas as bochechas enormes, ainda hoje não as perdeste e brincamos, eu digo-te tantas vezes que, qualquer dia, te tiro um bocado, eras tão pequenina, pegava-te com um braço, aninhava-te e tu agarravas a minha mama, que momentos, só nós duas, a seguir caías no sono mais profundo, e aquelas bochechas, não me cansava de olhar para ti, tão minha, como nunca mais, sim, porque hoje, quem diria, quem te visse, nunca diria que te transformarias na maior pirata deste mundo, consegues tirar-me do sério, zango-me, castigo-te, mas, no fundo, adoro-te como és, mesmo quando me desafias, como se eu fosse o inimigo, ralho, mas gosto, gosto de te ver desembaraçada, independente, torta, quero-te assim, orgulho-me do teu génio, da tua astúcia, do teu jeito para o desenho, e, como gosto de te espreitar, de te apanhar desprevenida, e a dormir és ainda mais adorável, as nossas bochechas e o ar indefeso fazem-me voltar anos atrás e pensar naqueles momentos em que só dormias embalada com a batida do meu coração, minha filha, poderia estar aqui horas, dias a fio, as palavras nunca se esgotariam, de ti, tudo me importa, depois de ti, pouco me importa...
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