sexta-feira, 21 de março de 2008

Memória

Já tive caixas e caixinhas cheias de tudo o que achei que devia guardar, coisas e coisinhas, pensava que como tinham sido importantes uma vez, continuariam a ser para sempre, guardava-as com tanto cuidado, como se isso bastasse para mais tarde agarrar um bilhete e voltar a viver a mesma viagem, até que um dia, nem sei qual, dei-me conta que não é assim, que os objectos guardados não me serviam, deve ter sido um dia em que me apeteceu, sou de apetecimentos, abrir uma das caixas e mexer em tudo o que estava lá guardado, depois de tudo bem mexido, não devo ter gostado de me lembrar de enfiada, devo ter espetado com tudo no lixo, mas sem rasgar, não devo ter gostado da dose industrial de lembranças, foi assim que deixei de dar importância aos objectos, às coisinhas, umas já nem me interessavam, não me faziam lembrar grande coisa, e outras já estavam onde deve ser, na minha memória, é ela que se encarrega de guardar o que é importante, ela e o tempo, os dois juntos fazem a gestão ideal do meu passado, de todos os meus passados, e a melhor prova que tenho disso é conseguir lembrar-me do que vivi há 20 anos como se tivesse sido há pouco e de ser capaz de me esquecer do que fiz ontem, é por isso e porque também não gosto do trabalho de guardar, que me limito nos registos, e também porque me sabe sempre tão bem quando, inesperadamente, alguém me leva atrás, ao que já tinha dado por perdido e que, afinal, estava lá, onde deve ser, gosto tanto quando alguém remexe na minha memória e me arranca um sorriso, ainda hoje me lembrei de tanta coisa, fui buscar um momento há tanto tempo, tanto, será assim tanto, e senti tudo como se fosse agora, guardei o repente e a força, o toque e o agarrar, ainda está guardado, até sei o dia, coisa estranha para uma destraída que passa os dias a esquecer-se de tudo, para quem teima em deixar tudo para a última hora e nem sequer se esforça em desenvolver a arte de fintar a distração com aqueles truques simples que vê aos outros, ainda agora, lembro-me para me esquecer já de seguida que tenho malas para fazer, o passaporte está mesmo à minha frente, desse não me vou esquecer, bato na madeira, a minha tonta superstição, a única, e nada, já sei que vou passar os últimos minutos a enfiar na mala o que me vier à vontade, faço assim porque até agora nunca me esqueci do mais importante, acabei agora mesmo de ripar os CD que comprei esta semana para enfiar no meu iPod, vão fazer-me falta em 11 horas, não me posso esquecer de amanhã comprar pastéis de Belém, ai não posso mesmo, porque me pediram, posso chegar sem eles, basto eu, boa resposta, mas gostava mesmo de não me esquecer, devia fazer agora mesmo uma lista, devia aderir aos lembretes, mas não, insisto estupidamente em confiar na minha memória caprichosa, que tanto se esquece do óbvio (ai, e o gravador), como se lembra do improvável, do que se passou naquele momento há tanto tanto tempo

2 comentários:

S. disse...

Acho que todos passamos por essa época das caixinhas onde se amontoam lembranças que a idade nos faz perceber que ficam mto mais guardadas num cheiro, numa música, numa imagem, na pele...

Gosto do teu jeito despreocupado de juntar ideias e libertar a alma.

Bjo*

Eu disse...

damasiado ;-)Bjs